BEM-VINDOS AO APAIXONANTE MUNDO DE LETRAS PRECIOSAS E IMAGENS ENCANTADORAS, SEJAM LEITORES, OBSERVADORES, CRÍTICOS E PALAVRÓFILOS, LEIAM, LEIAM, LEIAM. MESMO QUE UM PROVÉRBIO POPULAR SÉRVIO DIGA QUE "A CABEÇA É MAIS VELHA QUE O LIVRO", ISTO É QUE O PENSAMENTO É MAIS ANTIGO QUE A ESCRITA, LEIAM, ISSO AGUÇA O ESPÍRITO, ENRIQUECE O VOCABULÁRIO E A ALMA, DESPERTA A CURIOSIDADE E FAZ VOS PALAVRÓFILOS CURIOSOS TAMBÉM...
STEINER, George (2004) A Ideia da Europa, Prefácio de José
Manuel Durão Barroso, Gradiva, Lisboa, 55 pp.
Desde
a existência da Comunidade Económica Europeia (a actual União Europeia) as
ideias sobre a necessidade de um continente unido com os mesmos ideais e
valores políticos, económicos, sociais e culturais parece ser uma constante que
preocupa os pensadores, filósofos, sociólogos e outros investigadores do
domínio das ciências sociais e humanas e esta obra não é excepção. Nas palavras
de José Manuel Durão Barroso, este ensaio oferece “novas formas de encarar o
Velho Continente” e também “explica a ideia da Europa a partir da escala
humana, da geografia, de filósofos, artistas, professores sempre em movimento”
(p.15).
O
pensamento interessante e bastante original do qual parte Steiner pretendendo
desenvolver o seu conceito da Europa concentra-se na importância dos cafés das
grandes cidades da Europa, e particularmente a ocidental, que se relacionam
quase intuitivamente com as personalidades dos poetas, políticos, filósofos e
artistas que os frequentaram. Desta forma os cafés de Lisboa que foram os
lugres preferidos de Fernando Pessoa, os cafés vienenses e parisienses
frequentados pelos grandes nomes das culturas dos respectivos países, revelam
um pouco sobre o espírito de cada uma das cidades em questão, sobre o grau da
cultura destes países. Da mesma forma, é sublinhada a ideia que um pub inglês e um típico bar irlandês têm
a sua história, cultura e mitologia próprias, que determinam o lugar de cada
uma destas cidades no mapa cultural da Europa actual.
É
precisamente a partir da cultura, uma cultura específica e universal ao mesmo
tempo, que segundo Steiner se deve construir uma Europa unida e unificada, que
só então será forte e resistirá às ameaças políticas e a vários tipos de crises
que o continente pode enfrentar. Parece-nos que o ideário que Steiner propõe
rsponde e corresponde de certa forma às ideias europeístas elaboradas por
Eduardo Lourenço, que defende a possibilidade da criação de uma “mitologia
europeia”.
De
acordo com Barroso, “quem diz cultura, diz liberdade e diz diferença” (p.7),
isto é, a cultura deve estar por cima de quaisquer nacionalismos, excessivas
preocupações com a identidade étnica, política ou nacional e deve aproximar os
povos.
Quando
foi fundada, a actual União Europeia baseava-se apenas nos critérios económicos
(e economicistas) e a cultura e o seu valor nas integrações europeias foram
aparentemente bastante secundarizadas, para se evitarem os orgulhos
nacionalistas e para não se fomentarem as ideias da supremacia de uma cultura
sobre a outra. Esta tendência, porém, mudou, o que é visível na linha de
pensamento de George Steiner.
Nas
palavras de Rob Reiman, a cultura deve ser um convite para a cultivação da
nobreza de espírito, para o interesse pelo Outro.
Desta forma, segundo este autor “a cultura como amor não possui a capacidade
para obrigar” (p. 20). Isto é, a verdadeira cultura, pela qual luta a Europa
unida nega qualquer totalitarismo qualquer possibilidade da uniformização do
pensamento humano.
Voltando
à ideia inicial de Steiner sobre a importância das cafetarias numa cidade
europeia, ver-se-á que estes sítios são encarados como locais “ de entrevistas,
conspirações, debates intelectuais, mexericos” tal como locais em que as
pessoas procuram reconhecimento político, artístico e literário”. Os cafés são
encarados como centros de vida social e cultural, como sítios que reflectem um
específico espírito urbano europeu, que não existe nem na América do Norte, nem
na Ásia, nem na Austrália. Uma outra especificidade da cultura europeia, na
perspectiva de Steiner é que “a Europa foi e é percorrida a pé” (p. 28),
diferentemente dos outros continentes em que as distâncias geográficas entre as
cidades são bastante maiores e as pessoas parecem ser bastante mais afastadas
umas das outras. Nesta imagem enquadram-se o valor, a importância e a
diversidade de viajantes (peregrinos, autores de livros de viagens,
comerciantes, mestres, pensadores) que percorreram o solo do continente europeu
a pé. Esta é uma característica importante da polis grega, o berço do pensamento filosófico europeu. As cidades
europeias na linha de reflexão de Steiner são encaradas como cenários de
acontecimentos ao mesmo tempo “luminosos e sufocantes”, cujo significado
depende da perspectiva de quem observa estes lugares e as personalidades que
criaram cultura em cada uma delas.
Este
ensaio debruça-se também sobre o valor por vezes excessivo d passado histórico
nos países e culturas europeias encarnado no “peso ambíguo do tempo verbal
pretérito”, o que pode representar um problema grava quando a sobrevalorização
da identidade nacional conduz a genocídios, limpezas étnicas, preconceitos
sobre o Outro e sobre si próprio. A
identidade cultural europeia, segundo Steiner, reflecte se na “herança dupla de
Atenas e Jerusalém”, isto e nenhum europeu pode nem deve negar a importância e
força com que a sabedoria grega moldou a sua forma de pensar e ver o mundo, e
com que séculos de história, valores e fé cristã influenciaram a forma de crer,
sentir, ter esperança e olhar para o futuro. Como três pilares principais da
cultura europeia, Steiner destaca a música, a matemática e a filosofia, que
elevam o espírito humano e que enriquecem o seu mundo interior.
Não
obstante, este autor alerta para a intuição da Europa que pode ruir sob o peso
da sua própria grandeza, riqueza e complexidade, que não tiveram equivalente na
História e como exemplo desta afirmação refere as das guerras mundiais e a
aparente perda de força e de importância do cristianismo na Europa. Este autor
claramente tem em conta a cristandade ocidental, esquecendo mencionar sequer o
cristianismo ortodoxo, que poderia ser uma das potências reemergistes no
cenário cultural europeu actual. Da
mesma forma este pensador chama Moscovo de “subúrbio da Ásia”, e nesta atitude
revela-se uma posição um pouco depreciativa da Rússia e da sua cultua ou um
determinado elitismo com que se enfrenta o Ocidente europeu no sentido
cultural.
Steiner
é da opinião que a Internet, a padronização técnica a vida quotidiana, o uso do
inglês como uma espécie de língua franca
na comunicação não apenas vai aproximar os povos, como vai salientar a
necessidade e a importância de um continente unido nas suas diferenças e
particularidades, fazendo com eu um sonho europeu, liberto de ideologias
falidas continue a ser sonhado e vivido até se concretizar.
Esta
peculiar análise da cultura europeia e da Europa em si a partir de pormenores
aparentemente insignificantes, o estilo sobro e a linguagem clara e sem pretensões
intelectualistas, tornam a leitura desta obra acessível, embora não fácil ou
simplista, que são justamente as características pelas quais o pensamento de
George Steiner se destaca nas humanidades europeias contemporâneas.
Um
dos pontos menos fortes deste livro é a talvez demasiada concentração na
cultura da Europa ocidental, sem se debruçar sobre os valores da Europa do
Leste, a Europa central o a do Sul, porque não é completamente possível
construir-se uma mitologia europeia comum sem se terem em conta as suas grandes
partes no sentido geográfico, político, social e cultural.
De
ideias bem desenvolvidas, hipóteses fortemente argumentadas e de temática
sempre actual, A Ideia da Europa é
uma obra que deve ser lida e reflectida por qualquer intelectual europeu,
porque se debruça sobre aspectos fundamentais para uma sociedade e uma vida
melhor, e porque “a vida não reflectida , não é efectivamente digna de ser
vivida” (p.55).