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lunes, 1 de abril de 2013

dor e sofrimento na infância

BEM-VINDOS AO APAIXONANTE MUNDO DE LETRAS PRECIOSAS E IMAGENS ENCANTADORAS, SEJAM LEITORES, OBSERVADORES, CRÍTICOS E PALAVRÓFILOS, LEIAM, LEIAM, LEIAM. MESMO QUE UM PROVÉRBIO POPULAR SÉRVIO DIGA QUE "A CABEÇA É MAIS VELHA QUE O LIVRO", ISTO É QUE O PENSAMENTO É MAIS ANTIGO QUE A ESCRITA, LEIAM, ISSO AGUÇA O ESPÍRITO, ENRIQUECE O VOCABULÁRIO E A ALMA, DESPERTA A CURIOSIDADE E FAZ VOS PALAVRÓFILOS CURIOSOS TAMBÉM...
VASCONCELOS, José Mauro de (1968)  O Meu Pé de Laranja Lima, Melhoramentos, São Paulo, 192 pp.
"A história de um meninozinho que um dia descobriu a dor" poderia ser a ilustração perfeita do conteúdo deste peculiar romance infanto-juvenil, que por sua vez levanta muitas questões: se as histórias para crianças devem conter referências à dor, ao sofrimento, aos maus tratos e caso a resposta seja afirmativa, de que forma estas questões devem ser abordadas, sem que os seus leitores fiquem traumatizados ou emocionalmente inibidos na sua posterior vida adulta.
Narrando a infância de Zezé, um menino nascido no seio de uma família numerosa e pobre no Brasil,  José Mauro de Vasconcelos aborda o problema do crescimento e amadurecimento precoce das crianças carenciadas, a quem não se dedica a devida atenção na família, e que são educadas com métodos violentos (chineladas no rabo, bofetadas, puxões de orelhas) e que devido às difíceis condições socio-económicas em que vivem desde cedo são privadas até dos bens essenciais como o lanche, os sapatos, os medicamentos. Da mesma forma, uma infância cortada demasiado prematuramente pela falta de alegrias mais fundamentais como as prendas e a união da família no dia do Natal deixam na alma do protagonista marcas muito profundas, que o obrigam a revoltar-se contra muitas injustiças e a reagir de uma forma demasiado impulsiva ("como é ruim a gente ter pai pobre"), mas também ess mesma situação enche-o de remorsos e de culpas, trabalhando muito duro no dia do Natal e suportando humilhações e desprezo para poder comprar um cigarro ao pai desempregado.
O desejo do saber, a curiosidade que o leva aprender tudo, até os palavrões e "palavras difi´ceis" como " cadáver", "nádegas" ou "troglodita" transportam este menino para os mundos melhores e mais bonitos: o do cinema, em que imagina ser amigo próximo dos grandes heróis dos seus filmes preferidos, o da natureza, em que aprende a crescer e a desenvolver-se graças aos seus amigos o passarinho, sua voz interior que o ajuda a cantar sem palavras e a compreender o mundo, o pé de laranja lima, árvore a quem ele confia os seus medos, preocupações, sonhos, ideias sobre o futuro. Os familiares: o titio Edmundo, os irmãos Totoca e Luís, a irmã Glória, a mãe e até o "papai", essa figura ambivalente por quem o menino sente ao mesmo tempo rancor por causa da miséria em que vive, medo, respeito, compaixão e amor, ensinam-no, cada um à sua maneira as grandes verdades da vida: o que é a miséria, o que é a dignidade, a dor, o sofrimento, a esperança e a amizade. Carenciado de afectos e palavras carinhosas, vivendo em circunstÂncias demasiado duras para uma criança, consola-se e refugia-se nas aulas da sua professora, D. Cecília Paim, feia, mas generosa, que por vezes lhe dá dinheiro para comprar o bolo, sonho recheado, que não é por acaso que tem esse nome, uma vez que para um menino que passa fome, até esse gesto pequeno pode ser o alcance de um sonho, recheado do pensamento que ainda existem pessoas no mundo que não são malvadas. Outra figura interessante no romance é a personagem do "Portuga", Sr. Manuel Velardes, que gosta muito do menino, compra-lhe doces e refresos, passa tempo com ele, dá-lhe boleia no carro, leva-o a pescar e passear e tem uma coisa em comum com ele: é muito amigo da sua árvore Rainha Carlota. O portuga para Zezé é um reflexo no espelho de tudo aquilo que o pai não é: tem modales, é sofisticado, tem paciência, é educado e culto, é gordo e meigo como um rei dos jogos de cartas e entre eles cria-se uma amizade muito profunda, que não se baseia apenas nos bens materiais que o menino recebe, mas que vai até ao desejo de o menino ser adoptado.
porém, tudo o que mantém o protagonista no mundo da ilusão e imaginação, bruscamente é-lhe retirado das mãos, quando se apercebe que está a crescer, solta o seu passarinho interior, decide não ver mais filmes violentos e opta pelos filmes de amor em que "há muito abraço, muito beijo e toda a gente se gosta", o seu amigo Portuga é morto pelo comboio e o seu pé de laranja lima é cortado, até os lugares de que gosta vão-lhe ser retirados, porque se virá obrigado a viajar com a família para Santo Aleixo, onde o seu pai terá um emprego novo.
A constante privação e os esforços para sobreviver na miséria e na fome, a constante luta com a dor (física quando corta o pé com o caco de vidro ou quando é espancado pelo pai) emocional (a morte do amigo português, a tristeza pela falta de prendas de Natal, a resignação com o facto de a sua árvore preferida ser cortada) e psicológica quando é confrontado com o desamor e a negligência dos seus próximos obrigaram Zezé a crescer muito prematuramente e mesmo assim a não perder algo da sua ternura e inocência de criança. É justamente por isso que não quer dizer ao seu irmãozinho Luís que foi ele que comeu a galinha negra e prefere dizer-lhe que ela foi passar férias perto do Amazonas. mesmo que as suas ilusões tenham sido várias vezes negadas e desmanchadas de formas cruéis, ele prefere manter o Luís no estado de pureza, inventando para ele as mais belas histórias, imaginando que os animais do quintal são os habitantes do jardim zoológico, que o pátio da casa é a Europa pela qual eles costumam viajar etc.
Ainda que se fale na violência e na crueldade com palavras claras e muito abertamente, o final do livro é optimista: o pai vai ter um emprego melhor, nunca mais vai faltar prenda no seu sapatinho de Natal, ele consegue crescer e distribuir bolas de gude e outras coisas a crianças carenciadas, o que revela que existem a esperança e a ternura no mundo, que nem tudo é tão corrupto e tão desalmado e que o Menino Jesus não gosta apenas de meninos ricos, mas de todos aqueles que nele acreditam, recompensando justamente os que por ele suportaram o sofrimento com paciência e sem protestar.
Com muitos regionalismos e características da linguagem brasileira na escrita, esta obra torna-se próxima não apenas dos leitores do Brasil , da condição social e económica parecida  com a de Zezé, mas abre as portas para qualquer leitor europeu, que se queira identificar com o protagonista e o seu mundo. Embora marcadamente brasileira, esta criação literária toca nos temas universais e certamente sempre actuais como o crescimento, a infÂncia, o sofrimento e a dor, a importÂncia da família e a existência de carinho mesmo no meio familiar mais mal estruturado, que é o que dá a este romance um tom menos sombrio e mais humano, pelo qual este livro se deveria recomendar ao público mais novo.

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