Pergunta retórica
Da primeira vez que visitei Vila Viçosa, não a apreciei na sua plenitude. Não o digo pela localidade em si, mas porque isso simplesmente acontece sempre que os investigadores nos dirigimos a uma outra cidade para assistirmos a um seminário, conferência, colóquio, congresso ou qualquer outro evento de carácter científico que indubitavelmente enriquece os nossos conhecimentos, acrescenta algum aspecto novo às nossas experiências pessoais e profissionais, preenche um pouco a nossa agenda de contactos ou até pode servir como mais um ponto no nosso curriculum académico.
Quem diz Vila Viçosa, certamente como uma das primeiras associações que terá na sua mente será a figura elogiada e cuspida ao mesmo tempo de Florbela Espanca. Exactamente. Nem mais.
Foi ali que ouvi muitas excelentes comunicações e que também apresentei a minha perspectiva do amor e do medo nos versos desta poetisa eleita, uma das mais conceituadas no meu panteão literário. Foi ali também que vi o senhor Manuel.
Confesso que sou péssima em recordar rostos das pessoas, mas a sua cara de facto não me era estranha. Nomes, datas de nascimento, profissões, características, e tudo aquilo que cabe no domínio audível e verbalmente registável não me escapa, e modéstia à parte, posso dizer quee nisso sou imbatível. Por isso tenho a certeza de ter ouvido o seu nome e apelido nalgum lado. Só que no seu momento não o consegui conjugar com a sua cara. devido à minha vista operada ou à minha cabeça despistada, não sei e também tanto faz.
O senhor Manuel er uma pessoa de voz indefinível e rosto inclassificável (cuja única característica específica era um problema de visão). Nem tinha reparado nisso, e só o menciono porque foi ele próprio a sublinhá-lo e salientá-lo inúmeras vezes. ouvi esse pormenor e fiz as orelhas moucas.
Foi este mesmo senhor,segundo me recordei um pouco mais tarde, um frequentador regular da Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa e um dos amigos de Vila Viçosa, que se encarregou de levar a mim e mais alguns colegas congressistas à missa da festa da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e à típica procissão que todos os anos nesse dia decorre na Vila.
Não sou católica, mas decidi ir, por respeito às tradições e para conhecer e sentir melhor alguns aspectos importantes da cultura portuguesa. Após a cerimónia religiosa, caminhei durante algum tempo juntamente com outros calipolenses respeitadores deste ritual sagrado, observando os costumes e tentando mergulhar um pouco no univrso florbeliano, embora, verdade seja dita, não me pareça que ele tenha sido particularmente devota.
- Por que é que tu andas assim? sobressaltou-me dos meus pensamentos a voz do senhor Manuel, acentuando a última palavra da pergunta com uma curiosidade estranha pintada com uma pincelada de veneno e outra de malícia.
(Que eu saiba, nem na chamada para trabalhos que nos foi dirigida, nem na folha de estilo para a formatação dos artigos, nem na extensa correspondência que troquei com os membros da Comissão Organizadora do evento, constava que para se apresentar uma comunicação sobre Florbela Espanca andar como uma modelo mundialmente reconhecida era um requisito obrigatório). Tentei apreciar mais este cantinho do mundo pelo qual a célebre poeta andou perdida sem norte, amando este, aquel, o outro e toda a gente, procurando afogar as suas mágoas na constante busca do seu Prince Charmant, fiz de conta que não tinha ouvido a pergunta.
-Tu tiveste um acidente ou nasceste assim?- insistia a voz do senhor Manuel, pondo novamente a ênfase (e um determinado desprezo) no "assim".
Como julgo que o seu reparo não foi propriamente a coisa mais agradável de se ouvir, sobretudo no meio de muitos outros colegas congressistas, calipolenses por natureza ou por convicção e florbelianos convencidos e como as meninas boas não choram em público (segundo fui ensinada desde que tenho consciência de mim), respirei fundo, esperei que se juntassem mais pessoas e pronunciei as seguintes palavras, que talvez agradassem a própria Florbela muito mais que a minha comunicação:
- E o senhor é tão mal-educado sempre ou só tem ataques no dia oito de Dezembro?
Da primeira vez que visitei Vila Viçosa, não a apreciei na sua plenitude. Não o digo pela localidade em si, mas porque isso simplesmente acontece sempre que os investigadores nos dirigimos a uma outra cidade para assistirmos a um seminário, conferência, colóquio, congresso ou qualquer outro evento de carácter científico que indubitavelmente enriquece os nossos conhecimentos, acrescenta algum aspecto novo às nossas experiências pessoais e profissionais, preenche um pouco a nossa agenda de contactos ou até pode servir como mais um ponto no nosso curriculum académico.
Quem diz Vila Viçosa, certamente como uma das primeiras associações que terá na sua mente será a figura elogiada e cuspida ao mesmo tempo de Florbela Espanca. Exactamente. Nem mais.
Foi ali que ouvi muitas excelentes comunicações e que também apresentei a minha perspectiva do amor e do medo nos versos desta poetisa eleita, uma das mais conceituadas no meu panteão literário. Foi ali também que vi o senhor Manuel.
Confesso que sou péssima em recordar rostos das pessoas, mas a sua cara de facto não me era estranha. Nomes, datas de nascimento, profissões, características, e tudo aquilo que cabe no domínio audível e verbalmente registável não me escapa, e modéstia à parte, posso dizer quee nisso sou imbatível. Por isso tenho a certeza de ter ouvido o seu nome e apelido nalgum lado. Só que no seu momento não o consegui conjugar com a sua cara. devido à minha vista operada ou à minha cabeça despistada, não sei e também tanto faz.
O senhor Manuel er uma pessoa de voz indefinível e rosto inclassificável (cuja única característica específica era um problema de visão). Nem tinha reparado nisso, e só o menciono porque foi ele próprio a sublinhá-lo e salientá-lo inúmeras vezes. ouvi esse pormenor e fiz as orelhas moucas.
Foi este mesmo senhor,segundo me recordei um pouco mais tarde, um frequentador regular da Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa e um dos amigos de Vila Viçosa, que se encarregou de levar a mim e mais alguns colegas congressistas à missa da festa da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e à típica procissão que todos os anos nesse dia decorre na Vila.
Não sou católica, mas decidi ir, por respeito às tradições e para conhecer e sentir melhor alguns aspectos importantes da cultura portuguesa. Após a cerimónia religiosa, caminhei durante algum tempo juntamente com outros calipolenses respeitadores deste ritual sagrado, observando os costumes e tentando mergulhar um pouco no univrso florbeliano, embora, verdade seja dita, não me pareça que ele tenha sido particularmente devota.
- Por que é que tu andas assim? sobressaltou-me dos meus pensamentos a voz do senhor Manuel, acentuando a última palavra da pergunta com uma curiosidade estranha pintada com uma pincelada de veneno e outra de malícia.
(Que eu saiba, nem na chamada para trabalhos que nos foi dirigida, nem na folha de estilo para a formatação dos artigos, nem na extensa correspondência que troquei com os membros da Comissão Organizadora do evento, constava que para se apresentar uma comunicação sobre Florbela Espanca andar como uma modelo mundialmente reconhecida era um requisito obrigatório). Tentei apreciar mais este cantinho do mundo pelo qual a célebre poeta andou perdida sem norte, amando este, aquel, o outro e toda a gente, procurando afogar as suas mágoas na constante busca do seu Prince Charmant, fiz de conta que não tinha ouvido a pergunta.
-Tu tiveste um acidente ou nasceste assim?- insistia a voz do senhor Manuel, pondo novamente a ênfase (e um determinado desprezo) no "assim".
Como julgo que o seu reparo não foi propriamente a coisa mais agradável de se ouvir, sobretudo no meio de muitos outros colegas congressistas, calipolenses por natureza ou por convicção e florbelianos convencidos e como as meninas boas não choram em público (segundo fui ensinada desde que tenho consciência de mim), respirei fundo, esperei que se juntassem mais pessoas e pronunciei as seguintes palavras, que talvez agradassem a própria Florbela muito mais que a minha comunicação:
- E o senhor é tão mal-educado sempre ou só tem ataques no dia oito de Dezembro?
bem-feita!
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