GAMA, Joana da (2010), Ditos da Freira, Apresentação, notas e fixação de texto de Anne-Marie Quint, Centro de Estudos Clássicos Univerdidade de Lisboa, Instituto de Estudos de Literatura Tradicional FCSH Universidade Nova, Lisboa, 98 pp.
Quando se fala sobre a "cultura no feminino", a "escrita feminina" ou a "questão do género" em relação à criação literária ou artística no geral, não é raro sentir-se um determinado tom de desprezo ou ironia nas palavras de quem se refere a cada um destes temas. considerar a criação feminina no âmbito da literatura e da arte e a sua contribuiç\ao para a cultura como um factor de menor importância ou valor estético, é um assunto profundo e complexo e as razões para isso são múltiplas. alguns dos motivos principais para o aparecimento destes preconceitos podem ser o facto de a maioria das histórias de literatura serem escritas por homens, a impossibilidade de as mulheres terem o mesmo acesso à alfabetização como a população masculina, a atitude das próprias mulheres escritoras em relação à sua obra ou o desconhecimento do trabalho destas mulheres por parte do público leitor.
No caso de Joana da Gama, a sua obra escrita durante muito tempo foi considerada como obra de um valor estético menor, provavelmente por não ter sido devidamente estudada e promovida. Esta autora começa a escrever no século XVI, que é a época em que se começa a prestar mais atenção à educação e instrução das mulheres, graças à influência e ao trabalho de várias rainhas portuguesas, desde a D. Leonor até à Infanta Dona Maria.
Sobre esta escritora sabe-se pouco, porém o facto de ter nascido numa família nobre e de ter tido sempre uma independência financeira ajudou-a a desenvolver-se como autora. Após a morte do seu marido ela própria fundou um centro de recolhimento, mas nunca fez a profissão de freira, para poder governar as suas finanças e sentir-se mais independente.
A obra de Joana da Gama é pouco extensa e consiste em quarenta e sete fólios de aforismos sobre os tópicos que ela considerava dignos de reflexão e alguns fólios de poesias escriitas em formas métricas dominantes na sua época (sonetos, romances, vilancetes etc)
Embora fosse habitual que os livros publicados no século XVI tivessem um prólogo, um proémio, uma dedicatória, uma indicação sobre o conteúdo destinada ao leitor, Joana daesta escritora parece fugir um pouco à regra, sendo ela própria a apresentar-se e a introduzir a sua obra. Ao longo da introdução recorre aos mecanismos de "falsa modéstia" (um dos lugares comuns do século XVI), utilizando termos como "grande ousadia", "fraca memória", "pouca prudência" e "quem não sabe" para se referir a si e aos seus escritos.
O que é evidente nestas palavras é que a autora conhece perfeitamente o valor da sua escrita e que pretende produzir um efeito de admiração no seu público leitor. Mesmo não tendo feito a profissão da fé, assina os seus ditos como os de "freira", para dar mais autoridade às suas palavras e para salientar que o convento era o único sítio em que as mulheres podiam ter condiç\oes para acederem à cultura e para escreverem.
Dispostos por ordem alfabética, "ditos" de Joana da Gama tratam de temas universais como o amor, a amizade, a adversidade, os bons, a cobiça, Deus e outros, tal como aborda alguns dos tópicos importantes da literatura do século XVI, nomeadamente o descontentamento, o desengano, o desassossego, os bens temporais, a vã glória e temas afins.
Apesar de na sua época o casamento ter sido um dos tópicos inevitáveis dos moralistas, pensadores, teólogos, filósofos e intelectuais no geral, nesta série de aforismos não se encontra uma única palavra sobre este tema, mas não se sabe a razão exacta para semelhante atitude da escritora: será que se trata da infelicidade pessoal da autora durante um ano e meio de casada? Ou é uma forma de salientar a necessidade da independência feminina e da sua liberdade? Ou de uma desvalorização propositada do casamento enquanto instituição? Estas e outras reflexões e perguntas que podem surgir aos leitores (e leitoras) de Joana da Gama não deixam de ser meras suposições que no livro não encontram uma resposta adequada.
O curioso na linha de pensamento desta escritora é que não tem uma opinião positiva nem sobre a afeição nem sobre o amor, sendo o primeiro sentimento apenas algo que "afoga a razão, põe em ferros a liberdadee dana a fama e a põe em confusão" (p.29), e o segundo é caracterizado como contrário à honra e um "miserável estado" (p. 30) que deve ser afogado logo no princípio das suas manifestações. Esta visão pessimista do mundo das emoções poderia servir como uma prevenção da corrupção do bom comportamento das pessoas e especialmente dos jovens, sendo eles os mais susceptíveis às fantasias provocadas pelo amor.
Entre os ditos desta escritora há muitos que cabem no domínio do conhecimento geral como nomeadamente: "ninguém é bom juiz de si mesmo e nem basta pera se aconselhar" (p.34), "não há queem se defenda das envejas" (p.41) ou ainda "foge-nos o tempo, não o podemos alargar".(p65) Outras afirmações de Joana da Gama dão muito material para a discussão porque parece que não correspondem completamente à verdade. tais são os exemplos de "cegueira do coração, se a têm pessoas poderosas, têm a razão sojeita e torcida a sua vontade, e não a vontade a razão". Embora seja verdade que algumas pessoas quando est\ao no poder, abusam dele por causa da "cegueira do coração", este sentimento pode atingir todos os seres humanos e não apenas os poderosos. Outro pensamento que mereceria uma análise mais pormenorizada é sem dúvida o que se refere à natureza da seguinte forma: "a natureza em qualquer idade repugna e dá guerra (p.52 ) porque nem todos estão sempre insatisfeitos com o seu carácter e numerosas são as pessoas que aceoitam a sua própria natureza tal como é. A última reflexão sobre a qual é necessário debruçar-se é "Não tem ser humano que não obedece à razão" (p.60). Se todas as pessoas fossem tão racionais ccomo aclama a autora, como se explicaria a loucura, a fantasia a imaginação ou as reacções das pessoas que se comportam mais de acordo com as suas emoções?
Alguns dos aforismos desta escritora, por causa da sua simplicidade e clareza das ideias merecem uma atenção especial, como por exemplo a afirmaç\ao que a ccortesia "é um laço em que se prendem vontades" ou os "ditos do autor sobre si mesma". Neste segundo aforismo há-que destacar que a palavra "autor" está sempre no género masculino, porque no século XVI não existia este termo no feminino e ao mesmo tempo porque com este substantivo Joana da Gama preteendia dar mais valor às suas ideias e afirmar-se ainda mais como escritora. Escrever para esta autora é uma forma de encontrar a paz e de lutar contra "o grande mal da ociosidade".
Quando se refere a Deus, à esperança ou à fé, tem-se a impressão de que se trata mais de reflexões intelectuais do que de uma experiência intimamente vivida e sentida, o que tal vez se explique pela ausência de uma verdadeira vocação religiosa na autora.
Por vezes a escritora usa comparaç\oes muito originais, uma linguegemm viva e abundante em imagens literárias belas e elaboradas. Tal é o caso da comparação das pessoas desassossegadas com a maré, utilizar a ideia dos agrilhões que apertam a alma para a cobiça ou igualar a ira com um rio.
Em termos de poesia presente neste livro, parece poarticularmente interessante o diálogo entre a velhice e a razão, porque a raz\ao enumera motivos pelos que a velhice é digna e honrada, tentando apagar toda a tristeza e abatimento da primeira personagem do poema, As restantes poesias de Joana da Gama abordam os típicos temas do século XVI: a passagem do tempo, a mudança, o desengano, a dor e o sofrimento, sendo os romances de uma qualidade superior aos sonetos. Nota-se que a autora conhecia melhor a tradição popular portuguesa e que estas formas métricas lhe eram muito próximas, enquanto as formas eruditas como o soneto exigiriam tal vez um pouco mais de instrução formal.
Com uma excelente apresentação, dirigida "ao leitor curioso", imitando o estilo dos livros da época renascentista e barroca, este livro dá a conhecer uma das figuras femininas importantes para a cultura portuguesa. Joana da Gama, independente, livre, culta, sensível e em certos aspectos "à frente" do seu tempo, pretendendo recuperar o seu lugar e importância no âmbito da escrita feminina e da literatura portuguesa no geral.
Sobre esta escritora sabe-se pouco, porém o facto de ter nascido numa família nobre e de ter tido sempre uma independência financeira ajudou-a a desenvolver-se como autora. Após a morte do seu marido ela própria fundou um centro de recolhimento, mas nunca fez a profissão de freira, para poder governar as suas finanças e sentir-se mais independente.
A obra de Joana da Gama é pouco extensa e consiste em quarenta e sete fólios de aforismos sobre os tópicos que ela considerava dignos de reflexão e alguns fólios de poesias escriitas em formas métricas dominantes na sua época (sonetos, romances, vilancetes etc)
Embora fosse habitual que os livros publicados no século XVI tivessem um prólogo, um proémio, uma dedicatória, uma indicação sobre o conteúdo destinada ao leitor, Joana daesta escritora parece fugir um pouco à regra, sendo ela própria a apresentar-se e a introduzir a sua obra. Ao longo da introdução recorre aos mecanismos de "falsa modéstia" (um dos lugares comuns do século XVI), utilizando termos como "grande ousadia", "fraca memória", "pouca prudência" e "quem não sabe" para se referir a si e aos seus escritos.
O que é evidente nestas palavras é que a autora conhece perfeitamente o valor da sua escrita e que pretende produzir um efeito de admiração no seu público leitor. Mesmo não tendo feito a profissão da fé, assina os seus ditos como os de "freira", para dar mais autoridade às suas palavras e para salientar que o convento era o único sítio em que as mulheres podiam ter condiç\oes para acederem à cultura e para escreverem.
Dispostos por ordem alfabética, "ditos" de Joana da Gama tratam de temas universais como o amor, a amizade, a adversidade, os bons, a cobiça, Deus e outros, tal como aborda alguns dos tópicos importantes da literatura do século XVI, nomeadamente o descontentamento, o desengano, o desassossego, os bens temporais, a vã glória e temas afins.
Apesar de na sua época o casamento ter sido um dos tópicos inevitáveis dos moralistas, pensadores, teólogos, filósofos e intelectuais no geral, nesta série de aforismos não se encontra uma única palavra sobre este tema, mas não se sabe a razão exacta para semelhante atitude da escritora: será que se trata da infelicidade pessoal da autora durante um ano e meio de casada? Ou é uma forma de salientar a necessidade da independência feminina e da sua liberdade? Ou de uma desvalorização propositada do casamento enquanto instituição? Estas e outras reflexões e perguntas que podem surgir aos leitores (e leitoras) de Joana da Gama não deixam de ser meras suposições que no livro não encontram uma resposta adequada.
O curioso na linha de pensamento desta escritora é que não tem uma opinião positiva nem sobre a afeição nem sobre o amor, sendo o primeiro sentimento apenas algo que "afoga a razão, põe em ferros a liberdadee dana a fama e a põe em confusão" (p.29), e o segundo é caracterizado como contrário à honra e um "miserável estado" (p. 30) que deve ser afogado logo no princípio das suas manifestações. Esta visão pessimista do mundo das emoções poderia servir como uma prevenção da corrupção do bom comportamento das pessoas e especialmente dos jovens, sendo eles os mais susceptíveis às fantasias provocadas pelo amor.
Entre os ditos desta escritora há muitos que cabem no domínio do conhecimento geral como nomeadamente: "ninguém é bom juiz de si mesmo e nem basta pera se aconselhar" (p.34), "não há queem se defenda das envejas" (p.41) ou ainda "foge-nos o tempo, não o podemos alargar".(p65) Outras afirmações de Joana da Gama dão muito material para a discussão porque parece que não correspondem completamente à verdade. tais são os exemplos de "cegueira do coração, se a têm pessoas poderosas, têm a razão sojeita e torcida a sua vontade, e não a vontade a razão". Embora seja verdade que algumas pessoas quando est\ao no poder, abusam dele por causa da "cegueira do coração", este sentimento pode atingir todos os seres humanos e não apenas os poderosos. Outro pensamento que mereceria uma análise mais pormenorizada é sem dúvida o que se refere à natureza da seguinte forma: "a natureza em qualquer idade repugna e dá guerra (p.52 ) porque nem todos estão sempre insatisfeitos com o seu carácter e numerosas são as pessoas que aceoitam a sua própria natureza tal como é. A última reflexão sobre a qual é necessário debruçar-se é "Não tem ser humano que não obedece à razão" (p.60). Se todas as pessoas fossem tão racionais ccomo aclama a autora, como se explicaria a loucura, a fantasia a imaginação ou as reacções das pessoas que se comportam mais de acordo com as suas emoções?
Alguns dos aforismos desta escritora, por causa da sua simplicidade e clareza das ideias merecem uma atenção especial, como por exemplo a afirmaç\ao que a ccortesia "é um laço em que se prendem vontades" ou os "ditos do autor sobre si mesma". Neste segundo aforismo há-que destacar que a palavra "autor" está sempre no género masculino, porque no século XVI não existia este termo no feminino e ao mesmo tempo porque com este substantivo Joana da Gama preteendia dar mais valor às suas ideias e afirmar-se ainda mais como escritora. Escrever para esta autora é uma forma de encontrar a paz e de lutar contra "o grande mal da ociosidade".
Quando se refere a Deus, à esperança ou à fé, tem-se a impressão de que se trata mais de reflexões intelectuais do que de uma experiência intimamente vivida e sentida, o que tal vez se explique pela ausência de uma verdadeira vocação religiosa na autora.
Por vezes a escritora usa comparaç\oes muito originais, uma linguegemm viva e abundante em imagens literárias belas e elaboradas. Tal é o caso da comparação das pessoas desassossegadas com a maré, utilizar a ideia dos agrilhões que apertam a alma para a cobiça ou igualar a ira com um rio.
Em termos de poesia presente neste livro, parece poarticularmente interessante o diálogo entre a velhice e a razão, porque a raz\ao enumera motivos pelos que a velhice é digna e honrada, tentando apagar toda a tristeza e abatimento da primeira personagem do poema, As restantes poesias de Joana da Gama abordam os típicos temas do século XVI: a passagem do tempo, a mudança, o desengano, a dor e o sofrimento, sendo os romances de uma qualidade superior aos sonetos. Nota-se que a autora conhecia melhor a tradição popular portuguesa e que estas formas métricas lhe eram muito próximas, enquanto as formas eruditas como o soneto exigiriam tal vez um pouco mais de instrução formal.
Com uma excelente apresentação, dirigida "ao leitor curioso", imitando o estilo dos livros da época renascentista e barroca, este livro dá a conhecer uma das figuras femininas importantes para a cultura portuguesa. Joana da Gama, independente, livre, culta, sensível e em certos aspectos "à frente" do seu tempo, pretendendo recuperar o seu lugar e importância no âmbito da escrita feminina e da literatura portuguesa no geral.
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