NASCIMENTO, Michelle Vasconcelos Oliveira do (2011) Trocando Olhares, desejo, amor e dor na poesia de Florbela Espanca, Pluscom Editora, Rio Grande, 98 pp.
Recensão crítica por Anamarija Marinović
Um excelente título e um rico material para uma investigação a nível de Mestrado. Mesmo que os motivos de desejo, amor e dor sejam muito conhecidos, referidos e estudados na poesia de Florbela Espanca, permitem sempre a possibilidade de ais uma abordagem e interpretação original.
Seduzido pelo título e o tema prometedor, ao abrir a primeira página, o leitor encontra-se com um excerto do diário da poetisa (embora sem qualquer indicação bibliográfica) e o poema Os meus versos (também sem indicação da fonte) e descobre algumas das principais linhas de pensamento e inquietações literárias desta autora: a vida, a realidade, o sonho, o questionamento da existência de Deus, a criação poética, a dor, o sofrimento, o desassossego e, naturalmente o amor. Esta palavra é escrita com letra maiúscula quando se trata do sentimento, e com minúscula quando se dirige ao ser amado, o que talvez implique a impossibilidade de Florbela Espanca de conciliar o Amor como ideal que procura e o amor que sentia por cada um dos seus maridos e amantes. Esta hipótese, porém, não é explicada aos leitores de forma directa e deixa-se nas entrelinhas do texto do livro. A obra é uma tentativa de analisar a incapacidade que a poeta portuguesa sentia ao tentar comunicar através dos seus versos toda a sua sensibilidade feminina e a intensidade das suas emoções.
Após as grandes expectativas que se poderiam ter em relação a este estudo, publicado apenas como parte de uma dissertação de Mestrado, o livro peca logo na apresentação, em que se misturam a razão da publicação da obra e os agradecimentos, que poderiam ser divididos em dois paratextos diferentes. A introdução parece também confusa e pouco clara, uma vez que tenta explicar a razão de estudo frequente da poesia florbeliana, que segundo a autora:
se deve a vários motivos, entre eles a publicação, ainda em vida, de alguns dos seus versos e a crítica contemporânea e póstuma que contribuiu para a criação do mito em torno à poetisa e a sua vida. A curiosidade suscitada acerca da vida da poesia e a sua morte fez com que a sua obra se tornasse conhecida pelo público e fez com que alguns estudiosos se voltassem a ela, procurando identificar as nuances dos versos florbelianos.
(Vasconcelos de Oliveira do Nascimento, 2011,9).
Partindo da hipótese que todos conhecem a vida e obra da poeta e que não é necessário explicar as razões pelas que a figura de Florbela Espanca tem sido denegrida ou mistificada, Michelle Vasconcelos tenta justificar o interesse da crítica por ela e a intenção dos críticos de procurarem na sua obra o reflexo da sua vida pessoal e íntima. De qualquer das formas, talvez fosse conveniente dar um pequeno enquadramento das circunstâncias em que a poetisa portuguesa vivia e criava para tornar mais claras algumas controvérsias sobre a sua escrita e a forma de sentir, viver e expressar o amor, o desejo e a dor.
Um dos pontos fracos desta obra que seria necessário referir é a citação de poemas inteiros de Florbela Espanca sem serem explicados e sem se reflectir sobre eles de forma adequada. Citam-se também poemas de vários trovadores e de Camões, sem se salientar se de facto a poetisa em questão se inspirou justamente nestes poemas e sem isso ser argumentado com o suporte de fontes fidedignas. Na secção dedicada aos trovadores, é apresentado também um glossário, embora não indispensável. As notas de rodapé são por vezes demasiado longas e em vez de enquadrar o leitor no contexto de que se fala, parecem desviá-lo do tema principal da investigação.
Em termos de conteúdo, a autora mistura um pouco a psicanálise e a mitologia greco-romana, pretendendo explicar a importância do olhar no mito do Narciso, para posteriormente este material lhe servir para interligá-lo com o papel do olhar nos versos florbelianos.
Em relação às tentativas de definir o mito, a autora recorre primeiro a uma definição mais “popular”, que é a seguinte (idem, 14): “no senso comum usamos a palavra “mito” para nos opor a algo verdadeiro, ou seja ao conhecimento científico”. Depois de uma definição mais fundamentada e científica do mito, a investigadora passa para o papel do mito na psicanálise, referindo-se a este fenómeno da seguinte forma (idem, 15): “ O mito é a linguagem para a psicanálise assim como o inconsciente o é para Lacan” Sendo Lacan um dos cientistas influenciados pela psicanálise freudiana, não parece claro por que motivo se faz um “paralelismo” entre o mito e o inconsciente, entre a linguagem da psicanálise e este autor particular, uma vez que de seguida não se aprofunda esta linha de pensamento. A ligação entre o mito do Narciso e o olhar nos versos florbelianos parece um pouco forçada, e sobretudo desenquadrada do contexto mítico e psicanalítico. Na sua tentativa de definir a psicanálise, Michelle de Vasconcelos adopta talvez uma abordagem demasiado leve e informal, que é a seguinte idem,52): ” A psicanálise é um método de investigação que consiste essencialmente em evidenciar o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasias e delírios) de um sujeito. Se dedica um dos subcapítulos da sua obra a este tema, a autora poderia ter encontrado uma outra definição, mais estruturada e consistente, com mais rigor científico, que não reduziria a psicanálise apeas á interpretação dos sonhos e dos fenómenos linguísticos. Para além disto, a expressão “inconsciente das palavras” por ventura não seja a melhor escolha, uma vez que pode induzir o leitor na ideia de que são as palavras que têm o seu inconsciente e não o ser humano.
O próximo problema sobre o qual se deveria reflectir na análise desa obra é a menção do termo “eu-lírico”, sem ele ser definido ou problematizado de qualquer forma, e isso deveria ser feito, uma vez que este “eu” é muitas vezes confundido pela crítica e pelos leitores com a personalidade da poeta.
A obra abunda em afirmações demasiado generalistas entre as quais se destacam: “Desejar o que não se tem é a lei do desejo” (idem, 21”, “alma e coração parecem-se fundir”, “o coração, responsável pelo amor e pela dor de amar” (idem, 23), “a morte parece o único fim para o ser sofrido” (idem), “a imagem de chorar sem saber o porquê, expõe uma dor cuja causa desconhece o eu-lírico” (idem, 25), “o amor existe e pronto” (idem, 28), “a alma representa o eu” (idem, 49), “os olhos foram feitos para olhar” (idem, 65), “ a representatividade do olhar é grande nos versos de Florbela” (idem), “a escuridão é o oposto da claridade” (idem, 82) e “Florbela é a poeta do amor, como tantos outros poetas portugueses” (idem, 94).
Do ponto de vista estilístico, este estudo também muitas vezes peca, e isso reflecte-se nos elementos do registo coloquial (“e pronto”, começar a frase por “mas”, usar demasiadas vezes a expressão “ou seja”, utilizar a expressão “os versos mais lindos” idem, 49), “diz José Régio” (idem, 23), podendo este verbo ser substituído por “afirma”, “é da opinião”, “refere” ou outros, que dariam ao texto a impressão de um maior rigor científico. Na obra são inúmeras as repetições (começar vários parágrafos seguidos pela frase “é o amor…”, repetir muitas vezes “no poema/soneto acima”, “o desejo do eu-lírico é ser desejado”, “A respeito da temática amorosa na poesia portuguesa (…) Florbela Espanca é uma grande respeitante dessa temática” (idem) “Apo´s o estudo dos poemas de Florbela Espanca, percebe-se a frequência com que a temática amorosa aparece em seus versos e também as imagens que a engendram. Pode se afirmar até que esta temática é dominante na poesia de Florbela”. (idem, 94). O adjectivo “famosas” é usado duas ou três vezes dentro da mesma frase, podendo também ser substituído por outros, tais como “conhecidas” ou “célebres”.
A nível do conteúdo, esta obra apresenta algumas afirmações erradas “O trovadorismo é o primeiro movimento literário de língua portuguesa” (idem, 30), sabendo-se que o trovadorismo surgiu a Provença, no Sul da França. Do mesmo modo são deliberadamente misturadas as designações “canção de amigo” e “de amor” (que juntamente com as cantigas de escárnio e maldizer fazem parte da herança da literatura galaico-portuguesa de autoria erudita) com as cantigas populares, de autoria anónima. Afirmam-se também ideias pouco claras tais como:” Camões como Florbela é considerado um dos expoentes do platonismo na literatura portuguesa”, sem se perceber se o “platonismo” se refere às ideias de Platão ou ao conceito do “amor platónico”, e sem se aprofundar cientificamente este ponto de vista.
Em termos de estrutura, tem-se a impressão de que a autora “dá um salto” desde o trovadorismo até aos contemporâneos de Florbela, nomeadamente Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, tentando justificar a ocorrência dos motivos do desejo, amor e dor na poesia desta poeta.
No que diz respeito ao rigor académico e ao suporte teórico da obra, notou-se que as citações de determinados autores (Régio, Roland Barthes) são demasiado longas, sem serem problematizadas, ou sendo explicadas por um poema inteiro ou por um conjunto de versos de Espanca. As referências bibliográficas, além de serem escassas, são demasiado gerais e poucas delas têm a ver com a vida e obra da poeta, o que é grave, tendo em cont o facto que no Brasil ela é mito mais estudada do que em Portugal e que uma das maiores especialistas em Florbela a nível mundial, a Professora Doutora Maria Lúcia dal Farra, tem uma vasta bibliografia sobre ela e a sua poesia, publicada nas edições portuguesas e brasileiras.
Para esta obra ser melhorada em vários aspectos, deveria ser revista e aprofundada, porque reduz os sentimentos de Florbela espanca apenas ao amor não correspondido, o desejo frustrado e o olhar não captado, sendo de facto os versos da poeta muito mais do que isso.
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