Bem-vindos ao meu mundo de imaginação. literatura, cinema, fotografia, tradução de poesia e conheçam contos da minha autoria
Surrealismo por Anamarija Marinović
-Eu vou-me embora
daqui. Por quê? Porque lá para onde vou é normal que uma pessoa adulta tenha o
seu espaço, pelo menos um quarto alugado e não metade de um quarto dividido com
o irmão mais velho. Lá para onde vou os seres humanos dormem na cama e os
animais no chão. Lá para onde vou não necessito conter a respiração quando
tenho tosse para não incomodar ninguém. Lá para onde vou como o que quero e o
que eu própria preparo e não a ração que me é trazida pela Criada (à hora que
ela quer, subentende-se e sempre o mesmo prato, se como tal se pode designar
aquele pedaço de peixe, mal-tratado pelo fogo com cabeça tristonha, carregando
no seu dorso toneladas de alho e uns farrapos de salsa e uma rodela de limão
arrugado de tanto espremer e uma salada de beterraba nadando em vinagre, pois,
é saudável e rica em ferro, afirma a Criada, cuja infalível opinião, pesada
como golpes de maço e penetrante como a voz daquela vizinha velha de cabelos
vermelhos do primeiro andar, ecoa em casa há décadas e se obedece sem discutir,
apenas para não haver terramotos e par por uns instantes reinar uma paz podre,
falsa e quebradiça). Lá para onde vou almoço ao meio dia e não às quatro da
tarde (Pois, aqui a criada sempre se queixa que não pode, que não consegue, que
tem excesso de trabalho, que não aguenta mais, que carece de dinheiro, que lhe
doem todos os órgãos e partículas do corpo, que ela, desgraçada, não descansa,
nem pode, pois tem que tratar da casa, de todos os seus membros, da cozinha, da
casa-de-banho, da cozinha, da roupa, de todos nós, os nossos desejos e
caprichos, mas quando lhe pergunsto se necessita de ajuda, aparentemente sorri
e agradece: „ Não, minha alma“, para, passados alguns segundos gritar e
suspirar furiosa; „ Ai! Ai de mim! Eu sou escrava! Eu sou criada! Ai de mim,
infeliz! Ai da minha triste vida! Eu não posso mais! Vocês são uns ingratos!
Vocês são uns malcriados!“ (Ouvi dizer que como aluna não tinha sido particularmente
brilhante, que por razões que desconheço e que não tenho direito a julgar não
completou o décimo segundo ano, que teve uma vida carregada de dificuldades,
que ultimamente tem estado doente, o que tudo explica, poderá ajudar a
compreensão dos seus problemas, mas que, de modo algum os poderá justificar. E aliás,
conheço outras criadas, que fazem os mesmos trabalhos em outras casas, uma é
viúva, com uma filha com necessidades educativas especiais, mas é uma das
pessoas mais serenas e bem-dispostas com que me tenho cruzado na vida. Está
bem, cada um reage conforme a situação, o estado de ânimo, mundividências e
personalidade, mas a mim ninguém me convence que a Dona Maria do Carmo nada num
mar de rosas come perdizes e bebe leite de pássaro dourado das alturas da
montanha dos deuses e por isso é tão doce e mansa e que na vida da Criada nunca
brlhou um raio de sol, que comeu só cardos e pão com lágrimas. Por um lado,
ouvi-a uma vez a falar por telefone com uma irmã que vive na República vizinha
que, quando era jovem, tinha casado com o Dono da Casa apenas para fugir do pai
autoritário e mãe tirana, que nós éramos um castigo para ela e que não lhe
interessávamos. Tenho pena, deve ser realmente sufocante uma vida assim, mas
nós somos os responsáveis pelas nossas escolhas e as consequências de uma
decisão precipitada, mal-pensada ou tomada no momento de raiva, podem-nos
custar a vida ou um futuro brilhante, mas devemos aceitá-las como nossas, por
incorrigíveis que sejam, e não culpar a má estrela, o destino, Deus, o Diabo,
os membros da família, os vizinhos os extraterrestres, as migalhas do pão que
caíram no chão há mais de quatro décadas e não há quinze minutos e vinte e nove
segundos. Isso é ser adulto. Já sei. Por vezes dói, mas se não doesse, não
precisaríamos de medicamentos, se não nos magoássemos, não apreciaríamos a nova
e terna pele rosada que aparece no lugar da ferida... Espero que a Criada
alguma vez o compreenda. Se não, tentarei pelo menos não aumentar a quantidade
de fel que corre pelas suas veias e para não acrescentar razões para a sua vida
ser tão vazia por dentro. Triste... Triste estou por ela já que não a posso
ajudar melhor.
La para onde vou tomo banho
todos os dias e não uma vez por semana, pois a criada reclama ter tanta roupa
para lavar todos os dias. Lá para onde vou, ligo eu um botão, ponho o detergente,
quando se ouve um som característico, tiro a roupa, estendo-a e espero a que
seque. Aqui faria o mesmo, se a Criada permitisse que me aproximasse da
máquina, com a mesma réplica, aparentemente carinhosa de sempre: „Não, minha
alma“, para, passados alguns segundos, reiterar a mesma avalancha verbal de
alguns parágrafos atrás. Lá para onde vou, visto-me comforme a ocasião e a
disposição, naturalmente passando a minha roupa a ferro pessoalmente. Aqui, já
tudo me é trazido pela Criada, decidico por ela o que vou vestir, é ela que vai
sempre atrás de mi, corrigindo as minhas mangas, bainhas ou atacadores dos
sapatos e já é inútil dizer que quando pretendo desempenhar o meu dever e não
sobrecarregá-la, novamente me corta o aparente sorriso e a frase taquigrafada
nos lábios dela: „Não, minha alma“, para, passados alguns segundos, se
repetirem (para todas as eventualidades) as mesmas palavras supracitadas...
Lá para onde vou lavo e limpo eu, uma vez por semana, que basta para tudo
cheirar a fresco, para o pó fugir das minhas estantes e procurar alojamento nos
quartos dos outros, aqui não o faço, porque é a Criada que lava e limpa pelo
menos trinta e nove vezes (e meio) por dia e outras tantas por noite,
independentemente da hora, dia útil ou Domingo, férias, feriados ou a véspera
do fim do mundo. O único que a Criada consegue com tanto zelo é cada vez maior
caos e desordem em casa, que justificaria novos hectolitros de detergente, novo
constante fluxo da água da torneira, nova escravidão da desgraçada da
esfregona... E novamente os mesmos comentários: Ai! Ai de mim! Eu sou escrava!
Eu sou criada! Ai de mim, infeliz! Ai da minha triste vida! Eu não posso mais!
Vocês são uns ingratos! Vocês são uns malcriados!“ (Seguramente para se
certificar de que todos tinham ouvido o que com afinco e tenacidade tem
repetido desde as sete da manhã no mínimo umas boas oitenta e três vezes (a
contar sem espaços).
Lá para onde vou, posso de vez em quando receber visitas no meu quarto
acolhedor e limpo, e, diga-se de passagem, os meus convidados são sempre
bem-vindos, pois, um dedo de conversa, um chá ou sumo, uns petiscos e umas
pitadas de boa disposição são os ingredientes inevitáveis da minha prateleira
no apartamento alugado, cá tenho que me sobressaltar a cada toque da campainha,
esgeuirando-me como uma gata criminosa por toda a casa, estremecer-me por cada
telefonema, como se do outro lado do auscultador estivesse o Chefe Mundial dos
Terroristas a anunciar uma nova bomba
ato´mica. Por isso, e naturalmente para não ser incomodada, a Criada prefere
„desligar o estúpido aparelho da parede“, pensando, claramente na ficha que lá
se encontra.
Para não perturbar a ordem perfeita imposta pela Lei Universal da Cabeça
Infalível da Criada, frequentemente devo sair pela porta do serviço, porque, se
não sabiam, ela é anti-social e para ela todos os que alguma vez se atreveram a
atravessar o limiar da Casa são uns doentes anormais, aborrecidos, e claro,
inoportunos, que vieram de propósito para não a deixar descansar e para, como
se não tivessemos lavado as orelhas esta manhã, ouvirmos mais uma vez os
suspiros, gritos e ameças do início e meio desta história. Se bem que, toda a
gente em Casa anda nos bicos dos pés todas as tardes, para que nem a respiração,
nem o latir do coração perturbar o sono da Criada, adormecida com o comando à
distância colado à palma da mão de tal forma que nem sequer se pode desligar,
ou diminuir o som irritante das línguas incompreensíveis de telenovelas turcas
ou indianas (dilúvios de mau gosto, cores de papagaios nos infindáveis
cortinados que as protagonistas de rostos inexpressivos, petrificados de
lágrimas artificiais e maquilhagem de alta qualidade usam para tapar a nudez
dos corpos e a que se atrevem a chamar de vestidos, enredos superficiais e
personagens de capacidades intelectuais visivelmente reduzidas, a que as
multidões desocupadas e o públicos sem opinião crítica, recebem com aplauso e
admiração, sendo a Criada a primeira a defender „as culturas das terras deles“
e a acreditar piamente em tudo o que o pequeno ecrã lhe serve diariamente e em
abundância).
La para onde vou, tenho sempre com quem conversar e temas não me faltam.
Cá, se os meus interlocutores não são os passeios intermináveis, as fotografias
da paisagem, a natureza obsevada (como nas cantigas de amigo medievais), os
chás de maçã e canela ou de rom e laranja (Mmmmm! Maravilha!), ou a folha de
papel e a caneta com que escrevo as minhas histórias, tenho que me conformar
com as inúteis tentativas de interromper a Criada, que, quando não lava e
limpa, é, sem dúvida, a maior especialista em política mundial (pois claro, o
Ocidente e os Americanos (malditos cães sujos) se metem em tudo, desde a
Terceira Guerra Mundial (a caminho, melhor dito, ali à esquina), até aos preços
das batatas e das alfaces no mercado da segunda aldeia mais pequena no
Tajiquistão ou a quantidade de folhas de papel que podem usar os alunos da
terceira classe da Escola Básica algures no Camboja ou por aí nas redondezas, e
o mundo precisa de um valente e carismático líder como o do Coreia do Norte
para „por ordem em tudo“, ou a mulher de um dos ex-Presidentes do País (sim,
exactamente aquela gorda antipática vestida de preto com uma flor nos cabelos)
assim de repente é uma mártir e sofredora chorosa, que merece voltar à Pátria
(com todos os superlativos tema preferido da Criada) com a maior das honras
destinadas à antiga Primeira Dama). Lá para onde vou, a política é um assunto
de menor importância, pois, nos países tranquilos e organizados, as lutas pelo
poder a nível mundial são aborrecidas, mas mesmo assim posso dizer tranquilamente
que não me agrada particularmente a política dos americanos, que a União
Europeia, para além de algumas vantagens, tem pontos fracos a discutir, posso
exprimir a minha opinião sobre o conflito entre a Ucrânia e a Rússia, ou
guardar a minha posição para mim, manifestar-me sobre a democracia ou
totalitarismo, sem que ninguém me recrimine ou chame nomes depreciativos. Lá
para onde vou não há „malditos judeus a governarem o mundo inteiro“, teorias de
conspiração contra a Pátria e a Nação no estilo de Orwell, e se os houver,
julgo que me deixariam em paz, pois sou uma simples cidadã pequena que não tem
poderes sobrenaturais para reter todos os processos demoníacos que as forças do
mal universais tecem contra tudo o que não está de acordo com os seus planos
obscuros.
Para variar as especialidades, a Criada (quando não lava e limpa e quando
não debate a política mundial), é especialista em Migrações a nível planetário
(pois, claro, todos os „inimigos“ dela, do País, da Raça, de tudo e de todos
deveriam ser expulsos, dizimados, deportados, cuspidos, fuzilados, no sentido
literal ou figurado da palavra), na saúde (ela sabe até aos miligramas quantas
vitaminas, minerais, ácidos, Omega 3 ou proteínas contém até a sombra de cada
planta, se não se tratar, naturalmente, daquele veneno geneticamente modificado
que os extraterrestres americanos nos mandam desde o ar, tal como o fazem com a
gripe suína, gripe das aves, gripe das bonecas ou gripe das redes sociais (que
abundam em virus, se não sabiam). Uma das grandes especialidades da Criada, são
sem dúvida, as relações interpessoais e as destrezas de ouvir o Outro, como,
aliás, mostra em todo o momento , quando não lava e limpa e quando não debate a
política mundial, as migrações planetárias ou a saúde. A metade da frase,
interrompe o interlocutor com comentários indispensáveis e oportunos como: „ É, é assim, como não“ ou „ Chega-me
já de ti e das tuas parvoíces” ou ainda melhor: „ Estou farta de tudo!“, tendo
perfeitamente em conta a idade, posição social ou grau de escolarização da
pessoa do outro lado, por isso, trata a
todos com o indistinto respeito e diligência.
La para onde vou, as frutas e legumes são relativamente saudáveis, e se
forem genéticamente modificadas, simplesmente não as compro, há gripes,
certamente, mas procuro não adoecer, e sinceramente, quando me protejo bem e à
minha maneira, tanto se me dá a que estirpe animalesca a gripe pertence se não
a apanho e a comunicação e as relações interpessoais resultam-me incrivelmente
fáceis, isto é, valorizo as diferenças, debato com argumentos, filtro a
informação inútil e tenho o meu círculo de amizades firmes em que as palavras
bonitas ocupam o lugar dos insultos e a compreensão reina em vez da voz
monocórdica e omnipotente.
Lá para onde vou, perguntas como: “Comeste?“, „Dormiste?“, „Tens frio?“
fazem-se aos animais de estimação, enquanto na conversa diária imperam: „O que
tu opinas?”, „O que tu sentes?“, „Estás feliz/triste/satisfeita/preocupada?“ Lá
para onde vou posso sentir e estar apaixonada, independentemente de ser
correspondida ou não. Posso sonhar e confidenciar os meus planos, inquietações,
segrdos, medos, aqui nem se mencionam as palavras supérfluas, porque os irmãos
são sobrecarregados de trabalho, sufocados pelas enxaquecas intermináveis,
metidos cada um na sua catcumba de solidão, silêncio e angústia. E, ai de mim
se a Criada me ouvir a falar no meu universo pessoal, pois, para ela o amor, a
ternura, a amizade e as demais componentes da vida humana simplesmente não
devem existir, são “meninices”, o que vale é lavar e limpar, discutir a
política mundial (e amaldiçoar os judeus e os americanos), debater as migrações
planetárias (e expulsar, realojar, dizimar todas as caras que não concordam com
os elevados patamares patrióticos da sua utopia do mundo), especializar-se na
saúde e dissertar sobre os tomates geneticamente modificados dos
extra-terrestres americanos).
Lá para onde vou tenho o dia cheio de conteúdos motivadores e interessantes,
tenho uma rica vida social e cultural, e cá vejo-me fechada nas quatro paredes
da Casa, pois o café é caro, ter amigos é desnecessário e tudo é mais bonito em
Casa, ecoa a voz da Criada, acompanhado mais uma vez da incansável avalancha
verbal que até agora não ouviu só quem não esteve presente desde o início do
conto.
Lá para onde vou tomo decisões, certas ou erradas, mas fico firmemente por
detrás de cada uma, o meu sucesso é valorizado, enquanto o erro representa uma
nova experiência de vida e uma nova aprendizagem, cá, as decisões minhas
toma-as a Criada, pois ela é a inteligente, e tudo o que eu faça ou deixe de
fazer é digno de reprovação, crítica, indignação, juízos, recriminação,
maldição, desprezo e nova inundação de queixas e lamentações, que até o surdo
poderia repetir na perfeição.
Perguntam-me pelo porquê de tanto poder da Criada e porque o Dono da Casa
não faz nada, ou os outros seres que vegetam em casa conjuntamente comigo?
Pois, O Dono da Casa, envelhecido e adoecido, agora procura uma fuga nas
transmissões televisivas dos debates do Parlamento (repetitivos e monótonos,
mas mesmo assim melhores que as sempre carinhosas e amorosas intervenções
diárias na amável comunicação da Criada com todos), nos reality shows com cantores meio-esquecidos e estrelas da música
pimba que pretendem tornar-se conhecidas através de escândalos e
relacionamentos amorosos com os mesmos cantores, nos jogos de futebol
estrangeiro, de cujos clubes nem consigo pronunciar o nome, e tudo isso com a
televisão aos berros. Diga-se de passagem, o Dono da Casa nunca tinha grande
posição, nem muita força para se opor à Criada. Despedi-la não pode, porque
como foi dito no início do conto, é casado com ela, mudá-la não pode, porque,
embora os milagres aconteçam, fazer com que uma pessoa adulta mude de
personalidade, não é tarefa fácil, sobretudo tratando-se da estirpe das criadas…
E digamos mais um pormenor, a Criada é incrivelmente bela (se a beleza
compreende apenas a parte que pode luzir apenas pelo corpo), e quando não lava
e limpa, quando não discute a política mundial, as migrações planetárias e a
saúde e quando não bombardeia toda a gente com os mesmos comentários
supracitados, até não é má pessoa, só que… É Criada… Nem mais.
Espero que os irmãos consigam romper as paredes das catacumbas e sigam cada
um o seu caminho, longe do poder absolutista da Criada e que os seus ouvidos
algum dia não serão atacados com as amorosas avalanchas verbais que temos vindo
a mencionar.
O conto poderia continuar até à exaustão, mas como é conto e não romance de
setecentas páginas, e ainda mais surrealista, tinha que acontecer alguma coisa
inesperada, para inverter a situação, e foi exactamente assim:
- Eu vou-me embora daqui - Disse a personagem e fechou a porta, abandonando
o conto que lhe desgostava- e acrescentou: - Porque lá para onde vou estou
feliz e tenho liberdade.
E foi À procura de um outro livro e de uma outra história, não necessariamente
de fadas e princesas encantadas, mas indubitavelmente com um final feliz.